Arrependimento de ter lido só agora
5 stars
( sol2070.in/2025/10/trilogia-senhor-dos-aneis-tolkien-ursula-le-guin/ )
A trilogia cinematográfica d’O Senhor dos Anéis terminou me afastando dos livros de Tolkien. Não que seja ruim, até gostei na época, mas logo esqueci. Ela me fez imaginar que os livros também eram dispensáveis. Fui ler só agora.
Acabei achando os filmes descartáveis devido à caracterização simplista, entre outras. Além da personalidade e clima muito diferentes, há nuances que não foram para as telas.
Quem me convenceu a ler foram Ursula K. Le Guin (cujo artigo mais curto sobre Tolkien está traduzido abaixo) e Margaret Killjoy.
Killjoy apontou algo óbvio que nunca tinha reparado (e os filmes não me convidaram a reparar): o anel simboliza o poder e autoridade. Porque corrompe qualquer pessoa, mesmo as melhores. Portanto, precisa ser destruído.
Esse é um argumento central do anarquismo. Sim, Tolkien se declarava anarquista, filosoficamente. Ao mesmo tempo, acreditava na monarquia. Nada mais contraditório, mas seu …
( sol2070.in/2025/10/trilogia-senhor-dos-aneis-tolkien-ursula-le-guin/ )
A trilogia cinematográfica d’O Senhor dos Anéis terminou me afastando dos livros de Tolkien. Não que seja ruim, até gostei na época, mas logo esqueci. Ela me fez imaginar que os livros também eram dispensáveis. Fui ler só agora.
Acabei achando os filmes descartáveis devido à caracterização simplista, entre outras. Além da personalidade e clima muito diferentes, há nuances que não foram para as telas.
Quem me convenceu a ler foram Ursula K. Le Guin (cujo artigo mais curto sobre Tolkien está traduzido abaixo) e Margaret Killjoy.
Killjoy apontou algo óbvio que nunca tinha reparado (e os filmes não me convidaram a reparar): o anel simboliza o poder e autoridade. Porque corrompe qualquer pessoa, mesmo as melhores. Portanto, precisa ser destruído.
Esse é um argumento central do anarquismo. Sim, Tolkien se declarava anarquista, filosoficamente. Ao mesmo tempo, acreditava na monarquia. Nada mais contraditório, mas seu monarquismo é de outro mundo, aquele de sua estória, em que reis e rainhas são pessoas impossivelmente puras e compassivas, que só existem em contos de fadas.
Para mim, essa foi a chave para apreciar a trilogia: na verdade, é um conto de fadas, de 1.500 páginas, somando os três livros. E adulto — ao contrário de O Hobbit (1937), Tolkien publicou a trilogia principal com o público adulto em mente, entre 1954 e 1955.
Contos de fadas não seguem a mesma lógica de romances. Falam a linguagem da mitologia ou dos sonhos. Tentar ler Frodo como o protagonista de um romance não funciona, pois é irritante de tão bonzinho. É aí que entra Gollum, sua outra metade. Nos sonhos, é assim: a criatura asquerosa que persegue a protagonista é parte essencial da pessoa sonhando. E, nos sonhos, a protagonista é muito incompleta: não lembra de tudo, não sabe como foi parar ali e nem se pergunta isso — é incompleta porque suas outras partes estão espalhadas por todo o sonho, inclusive pelo cenário.
Sou grato por ter lido antes da trilogia o ensaio “The Child and the Shadow” (do livro The Language of The Night, 1979) em que Ursula K. Le Guin aponta isso. Um trecho (contém spoilers):
Críticos têm sido duros com Tolkien por ser simplista, por dividir as pessoas habitantes da Terra Média entre boas e más. E, de fato, ele faz isso — seus personagens bons tendem a ser inteiramente bons, embora com fraquezas encantadoras, enquanto seus orques e outros vilões são totalmente perversos. Mas tudo isso é um julgamento feito à luz da ética diurna, pelos padrões convencionais de virtude e vício. Quando se olha para a estória como uma jornada psíquica, o que se vê é algo bem diferente — e muito mais estranho.
Vê-se então um grupo de figuras luminosas, cada uma com sua sombra escura. Contra os elfos, os orques. Contra Aragorn, o Cavaleiro Negro. Contra Gandalf, Saruman. E, acima de tudo, contra Frodo, Gollum. Contra ele, e com ele.
É algo verdadeiramente complexo, porque ambas as figuras são claramente duplas. Sam é, em parte, a sombra de Frodo, seu lado “inferior”. Gollum também é duas pessoas, num sentido mais direto e esquizofrênico; ele está sempre falando consigo mesmo — Slinker conversando com Stinker, como diz Sam. Sam entende Gollum muito bem, embora não o admita nem o aceite como Frodo faz, permitindo que Gollum seja seu guia, confiando nele. Frodo e Gollum não são apenas ambos hobbits; eles são a mesma pessoa — e Frodo sabe disso. Frodo e Sam representam o lado luminoso; Sméagol-Gollum, o lado sombrio. No fim, Sam e Sméagol, as figuras menores, se afastam, e tudo o que resta é Frodo e Gollum, no final da longa jornada. E é Frodo, o bom, quem fracassa — quem, no último momento, reivindica o Anel do Poder para si. E é Gollum, o mau, quem cumpre a missão, destruindo o Anel — e a si mesmo com ele.
O Anel, arquétipo da Função Integradora — o princípio criativo-destrutivo — retorna ao vulcão, à fonte eterna da criação e da destruição, ao fogo primordial.
Visto assim, você pode chamá-la de uma estória simples? Suponho que sim. Édipo Rei também é uma estória bastante simples. Mas não é simplista. É o tipo de estória que só pode ser contada por quem se voltou para encarar a própria sombra — e olhou dentro da escuridão.
Essa inseparabilidade entre Frodo e Gollum não é mera teoria. Um trecho de As Duas Torres:
Por um momento pareceu a Sam que seu mestre [Frodo] crescera e Gollum encolhera: uma sombra alta e severa, um senhor poderoso que ocultava seu brilho em uma nuvem cinzenta, e a seus pés um cãozinho choramingando. No entanto, de algum modo os dois eram semelhantes, e não estranhos: conseguiam alcançar a mente um do outro.
Outro elemento que me cativou foi a ausência de deidades sobrenaturais ou religião na estória. Porque as próprias personagens são divinas. Galadriel, Bombadil, os seres-árvores Ents, Gandalf, Aragorn (ao final)… Não é preciso rezar para nenhuma entidade superior porque todo o poder, magia e cura já estão distribuídas entre as personagens.
Esse senso transcendental natural percorre toda a fábula e imagino que seja um elemento-chave para a obra cativar tanta gente. É como se substituísse a religião, não apenas como atividade, mas contendo seus elementos principais.
A edição recente da Harper Collins Brasil é primorosa. Vale a pena pegar o box (faz pouco tempo, estava pela metade do preço em várias livrarias). A tradução é ótima, vertendo também um dos pontos altos da narrativa: o modo bem próprio de falar de cada classe.
O primeiro volume enfatiza o deslumbramento da nova jornada por lugares e personagens com poder de encanto. O segundo, foca na relação entre Gollum, Smeagol, Frodo e Sam. E o terceiro é ação e combate.
Vou cometer algo que Le Guin considerava desfaçatez: interpretar significados com lentes externas à estória, algo que não pude deixar de notar. Para ela, estórias não deveriam ser alegóricas, significando uma outra coisa, exigindo análises sociológicas ou psicológicas.
Mas… por que os hobbits são mais resistentes ao poder do Anel? Além da estatura humilde (não apenas física), o Condado é a única sociedade anarquista, poderia se dizer, da Terra Média. Praticamente uma utopia. Faz muitas gerações que desprezam o poder, não se sentindo tão compelidos e exercê-lo. Apesar de um prefeito às vezes ser citado, fica claro que ele é simbólico e o que reina é a auto-organização natural.
Outro tema anarquista bastante explorado é a ajuda mútua e a solidariedade — inter-espécies também. Nos filmes, o transbordamento das emoções da amizade cai no sentimental novelesco — com violinos e tudo. Nos livros, as conexões humanas de fato emocionam.
Reconheço que encarar o tijolaço não é pra todo mundo. Mas havendo algumas dessas disposições que mencionei, é uma jornada memorável. Perto do final até me peguei às vezes capturado pelo monarquismo transcendental de Tolkien. Diante de uma sacerdotisa como Galadriel ou um rei como Aragorn, até eu deixaria de lado convicções. Isso é possível no reino da imaginação, um lugar bastante subestimado.
Segue o ensaio da excelsa Le Guin. sol2070.in/2025/10/trilogia-senhor-dos-aneis-tolkien-ursula-le-guin/