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Quando uma crise ambiental e econômica leva ao caos social, nem mesmo os bairros murados …

Ficção climática presciente de 30 anos atrás

5 stars

(original, com reprodução de entrevista → sol2070.in/2024/09/livro-parabola-do-semeador-entrevista-octavia-butler/ )

"A Parábola do Semeador" ("Parable of The Sower", 1993) talvez seja o livro mais admirado da estadunidense Octavia Butler. Além dos prêmios que recebeu há 30 anos, voltou a ser muito lido recentemente por ser, além de um ótimo romance, um dos mais vívidos retratos da catástrofe climática — boa parte da história se passa entre 2024 e 2027.

Apesar de não ser leitura fácil, está entre as melhores distopias que já li. O horror dos primeiros anos de um colapso social total devido à emergência climática e ao sistema econômico é chocante a ponto de precisar baixar o livro e respirar de tempos em tempos. Ouvi gente dizendo que não suportou e largou.

É uma predição assustadoramente plausível do que pode acontecer, incluindo até a volta da escravização — a culminação da atual piora constante das condições de trabalho apontaria para onde?

Li nesses dias uma resenha sobre outro livro — "Alerta Vermelho", de Marha Wells (está na minha lista) — em que o autor reclama do cenário de capitalismo distópico como sendo um lugar-comum pouco criativo. Ele parece preferir cenários otimistas, que ajudam a imaginar futuros mais plenos. Já eu gosto de histórias de distopias catastróficas justamente porque abrem os olhos para o presente — sem isso, não teremos a menor chance. O desconforto, ou até angústia, fazem parte. Parece-me um negacionismo sutil querer evitar o desagradável. Além disso, essas histórias retratam como as pessoas lidam com a situação. Acabam sendo bem práticas para o momento atual.

Entretanto, acho sim certa falta de imaginação aquele cenário comum em que, sem governo e polícia, as pessoas passam apenas a predar umas às outras. Isso não falta em A Parábola do Semeador. Mas como é um tempo de transição, em que os valores da civilização sendo destruída ainda não foram substituídos, faz sentido.

Na história, acompanhamos Lauren, uma adolescente com hiperempatia, a capacidade (fictícia) de sentir involuntariamente em seu corpo a dor e prazer de seres próximos. Após a comunidade murada onde vive ser destruída, ela precisa enfrentar a estrada. Ao buscar sentido, seus questionamentos acabam dando forma a uma nova filosofia-religião, em que “Deus = mudança”, ou seja, o único princípio universal é a constante transformação. Por questão de sobrevivência, pessoas vão se reunindo em torno dela, e a compaixão da comunidade que vai se formando acaba sendo uma tocante utopia dentro da distopia.

Octavia Butler disse que escreveu essa história como se fosse a autobiografia (a narração é feita em um diário, que parece reproduzir até os erros de grafia que existiriam em um original do tipo) da fundadora da religião que se disseminou pelo mundo devastado.

"A Parábola do Semeador" é o primeiro volume de uma série interrompida pela morte da autora, em 2006, após o segundo volume, "A Parábola dos Talentos". Entretanto, a história vale por si só, independentemente dos volumes que não chegaram a ser escritos.

@sol2070@velhaestante.com.br Ótima resenha! Livro com temática bem relevante na atualidade. Também li a entrevista do blog, obrigado por transcrevê-la.

gosto de histórias de distopias catastróficas justamente porque abrem os olhos para o presente — sem isso, não teremos a menor chance. O desconforto, ou até angústia, fazem parte. Parece-me um negacionismo sutil querer evitar o desagradável.

Concordo. Um amigo, depois assistir alguns episódios de Black Mirror, veio me dizer que a série o fazia ficar "pensando" (nesse sentido desagradável, ele queria dizer). Na ocasião, não quis confrontá-lo. Mas é isso: qualquer coisa que provoca reflexão ou mudança causa esse atrito.